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Entrevista: “Em Portugal, temos uma ótima relação com a saúde”

Jorge Atouguia, médico especialista em infeciologia, reflete sobre o balanço das respostas à pandemia, com destaque para a relação entre política, ciência e gestão da saúde global.

11 Nov, 2021
7 min de leitura

Como é que a relação entre política e saúde foi impactada pela pandemia de Covid-19? E qual o papel – e imagem pública – da Organização Mundial da Saúde [OMS] ao longo de todo este processo? Jorge Atouguia, especialista em infeciologia e professor associado de medicina tropical do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, aborda algumas das consequências políticas e diplomáticas da pandemia, em entrevista ao Imune.pt.

Assistimos, em alguns países, a decisões políticas durante a pandemia de Covid-19 que estiveram desalinhadas com o que se sabia, à data, sobre o vírus – e que até contrariaram a ciência. Faria sentido, em crises de saúde globais, acautelar algum nível de autonomia executiva às autoridades de saúde?

Uma parte científica isolada, do ponto de vista de decisão e execução? Na minha opinião, a política e os poderes executivos nunca vão permitir isso. E tivemos exemplos: repare como a OMS sai completamente de rastos de uma segunda vaga, depois da destruição feita por Donald Trump, na altura presidente dos Estados Unidos. O próprio CDC [Centers for Disease Control and Prevention, EUA] também é desacreditado, colocado completamente abaixo daquilo que era expetável. À vista destes exemplos, não creio que seja possível fazer essa cedência. Tudo tem de passar pelo bom senso e pela boa formação dos políticos que tomam decisões.

Como vê essa relação entre política e saúde em Portugal?

A relação existente entre política, saúde e povo é diferente de país para país, de região para região. Em Portugal, temos uma ótima relação com a saúde. Acredito que esta boa relação – fruto, por exemplo, de campanhas de vacinação anteriores e de taxas altíssimas de vacinação contra outras doenças – foi uma das grandes vitórias que tivemos na primeira onda da Covid-19, por exemplo, e que se se refletiu também nas elevadas taxas de vacinação contra a Covid-19. Nessa primeira fase, na primeira onda, tudo correu bem porque a política foi sensata e houve consenso sobre as medidas que foram tomadas, não houve oposições. Mas, com o tempo, surgem aquelas pessoas que querem ter opinião, que querem aparecer – e é tão fácil, nesta altura, aparecer. Grande parte da informação sobre a pandemia que é transmitida ao público em geral é feita pelos comentadores políticos. E é óbvio que as pessoas preferem ouvir o comentador político – que parece ter sempre coisas novas para dizer, seja pela negativa ou pela positiva –, do que o meu colega que está no telejornal. A perversidade destes cenários complica muito a gestão da pandemia.

Analisando toda esta gestão desde o início da pandemia, as decisões tomadas foram as melhores?

Estivemos e estamos relativamente equilibrados. Percebe-se que as decisões tomadas pela DGS [Direção-Geral da Saúde] têm bases científicas. Umas são mais cautelosas, outras são mais pressionadas pela política além-saúde para proteger a economia. Neste equilíbrio, há uma jogada de cintura que tem de ser feita pela DGS. Claro que, dentro da ciência, as opiniões podem ser mais extremas para uma das situações ou mais extremas para a outra, dependendo da interpretação. Mas é um pouco destes contrapontos que é feita a nossa evolução e o nosso caminho. O que precisamos é de entender muito bem quais são as forças que estão em jogo nas decisões que são tomadas.

Além disso, são decisões que têm em conta pressupostos científicos em constante evolução…

A ciência que temos sobre o vírus SARS-CoV-2 é uma ciência com menos de dois anos de vida. Estamos perante uma ciência completamente embrionária, que ainda não teve tempo suficiente. Há a necessidade de termos dados, obviamente, mas não há tempo para os comprovar, para os avaliar sequer. Veja-se a quantidade de artigos que são publicados sem terem referees. Tudo isto condiciona uma ciência de impressão e não de bases sólidas, de resultados. Tudo muda muito rapidamente e é sobre esta ciência que os políticos tomam decisões. Já é um cenário desafiante por si – e tudo se agudiza quando os políticos tomam decisões que nada têm que ver com a verdadeira ciência, como assistimos noutros países com governos mais populistas.

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Focou há pouco a questão da deterioração da imagem da OMS, ao longo da pandemia. A seu ver, esta é uma consequência relacionada com a natureza da própria instituição?

É um problema de base da OMS. A OMS sempre teve a limitação de não poder ser executiva. É consultiva, pode ser imperativa, mas não pode ser impositiva, o que é um problema global deste tipo de instituições. Neste momento, a intervenção de cariz mais executivo da OMS é muito mais feita através das parcerias que tem, do que propriamente como instituição que chega e vai decidir. Até porque as pessoas não ligam absolutamente nada às decisões da OMS.

O que justifica essa indiferença?

Em primeiro lugar, a OMS aparece atrasada na maior parte das circunstâncias. Até porque as decisões que toma são, provavelmente, mais colegiais, o que leva a que perca rapidez perante o problema. Outras instituições – como o CDC, por exemplo – são mais ativas. Depois, existem também os receios políticos de uma instituição como a OMS, que ficaram bem patentes até perante as grandes questões – ainda sem resposta – sobre a origem do vírus. Tudo isto tira algum crédito público à OMS.

Seria possível renovar este crédito, de alguma forma, tornando a OMS mais forte?

O meu pessimismo diz-me que não. Teria de existir uma figura à frente da OMS que estivesse muito bem enquadrada entre as instituições de poder e financeiras – e que pudesse assumir essa função. Mas a política globalizante da OMS de escolher pessoas de determinado tipo de países para ficar à frente da instituição pode, por si só, limitar esta possibilidade. O mesmo sucede em relação à própria ONU [Organização das Nações Unidas].

Uma OMS mais forte teria alavancado uma resposta global mais rápida contra a pandemia?

É-me difícil ver uma OMS muito mais forte. Mas acredito que uma OMS mais forte tomaria posições mais rápidas, antecipando que as situações pudessem evoluir de uma forma mais célere. Algo que poderia ter efeitos positivos a tentar bloquear a evolução rápida da pandemia, em determinadas alturas. A minha sensação é que as posições da OMS chegaram sempre tarde, quando já havia outros a tomar decisões – muitas vezes os próprios países

A gestão da saúde global envolve também outras questões políticas bilaterais e relações diplomáticas. De que forma é a pandemia de Covid-19 impactou a diplomacia global?

Podemos ver esse impacto logo na questão das vacinas e nos certificados de vacinação. Estamos a usar, na Europa, um certificado de vacinação que permite que pessoas de fora entrem no espaço europeu se usarem as mesmas vacinas autorizadas na União Europeia. O problema são as pessoas de fora da Europa que foram vacinadas com vacinas não aprovadas cá. Aí a decisão depende de cada Estado-Membro, mas é preciso alguma coragem para tomar essa decisão unilateralmente. Todas estas questões podem contribuir para aumentar as desigualdades e fossos entre países – além das assimetrias no acesso às próprias vacinas. Refiro-me, por exemplo, a questões de mobilidade. Este tipo de “passaportes” acaba por entrar em questões de diplomacia e podem até existir alguns fatores de conflito, numa lógica de “se não me deixas entrar no teu país, também não te deixo entrar no meu”. Portanto, não é nada de estranhar que a diplomacia depois tenha de funcionar em muitos casos.