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Entrevista: “Assistimos à maior desigualdade que pode existir” no acesso global às vacinas Covid-19

Qual o panorama em termos do acesso global às vacinas Covid-19? Jorge Atouguia, médico especialista em infeciologia, aborda o fosso existente entre países ricos e pobres, destacando os principais desafios no acesso global às vacinas.

2 Ago, 2021
8 min de leitura

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), à data de 20 de julho de 2021 já tinham sido administradas mais de 3,6 mil milhões de doses de vacinas contra a Covid-19, em todo o mundo. Nesta que é a maior campanha de vacinação da história, os números globais escondem, contudo, um fosso de desigualdade entre diferentes países e regiões. Ou seja, as populações das nações mais desenvolvidas e com mais recursos estão a ser vacinadas a um ritmo 30 vezes mais rápido do que as populações dos países mais pobres. De um lado da balança, há países já com 70% da população vacinada, enquanto noutros – como Uganda ou Serra Leoa – a percentagem não chega a 1%.

 

“Quem trabalha com doenças tropicais não pode ficar surpreendido com a desigualdade a que assistimos em termos de vacinação global contra a Covid-19”, comenta Jorge Atouguia, médico especialista em infeciologia e medicina tropical. Em entrevista ao Imune.pt, o também presidente da mesa da Assembleia Geral da SPMV – Sociedade Portuguesa de Medicina do Viajante analisa os dados atuais da vacinação global e os grandes desafios na origem deste desequilíbrio entre as nações mais ricas e mais pobres do planeta.

Como avalia, até agora, os esforços globais de vacinação contra a Covid-19, sobretudo numa perspetiva de um acesso equitativo às vacinas?

Do ponto de vista da equidade e do acesso global às vacinas, assistimos à maior desigualdade que pode existir, mas devo dizer que não estou surpreendido. Não estou surpreendido porque sempre foi assim perante qualquer doença, mesmo sem ser uma doença pandémica. Os países pobres sempre foram aqueles com menor acesso. Os países ricos sempre foram aqueles que se debruçaram e financiaram investigação sobre as doenças, mesmo as que têm menores riscos de transmissão.

Esta desigualdade é um ‘dado adquirido’ na história das doenças contagiosas?

Sim. Temos diversos exemplos, como as grandes diferenças entre a malária e o HIV. O HIV era uma doença do hemisfério norte e só mais tarde passou a ser das zonas tropicais. Portanto, rapidamente os países ricos procuraram arranjar soluções para a doença. Já a malária e outras doenças específicas das regiões tropicais não são uma prioridade para resolver por parte da investigação e por parte de quem financia. Quem trabalha com doenças tropicais não pode ficar surpreendido com a desigualdade a que assistimos em termos de vacinação global contra a Covid-19.

Ao contrário dessas doenças tropicais, a Covid-19 é uma pandemia. Esta abrangência geográfica trouxe diferenças na cooperação internacional?

A partir do momento em que se estabeleceu o estatuto de pandemia, cada país ficou basicamente a trabalhar para si. Portanto, cada país decide o que quer decidir, abre ou fecha as fronteiras conforme quer, e desvanece-se este conceito mais igualitário de tentarmos olhar para todos os países. Torna-se, de certa forma, um ‘salve-se quem puder’. Ainda assim, a União Europeia conseguiu manter alguma unidade, sobretudo no que diz respeito à política de aquisição e administração de vacinas. Mas, neste momento, falar do problema das desigualdades no acesso à vacinação é uma questão dialética. Cada país está a pensar por si. Cada país está a tentar resolver os problemas que tem. E cada vez vão existindo novos problemas. Veja-se o que estamos neste momento a assistir, com esta nova vaga.

Ainda assim, não controlar a pandemia nos países mais pobres é também um risco para os países mais ricos…

Esse é um aspeto importante e que pode ajudar a que alguns destes países que não têm acesso às vacinas possam, eventualmente, ter algum apoio mais específico. Sabemos que, quanto mais casos existem em determinadas áreas do globo, maior a possibilidade de mutações do vírus. E mais mutações do vírus dão origem, obviamente, à possibilidade de aparecimento de novas variantes que possam ser variantes de preocupação. Mas não tenhamos ilusões: havendo vacinas e havendo possibilidade de acelerar o processo de chegar à imunidade de grupo, essas vacinas são distribuídas a quem as pode comprar.

E qual poderá ser o impacto destas desigualdades na tão ambicionada imunidade de grupo?

Tenho dúvidas que consigamos chegar aos tais 85% necessários para a imunidade de grupo. Porque teremos sempre os hesitantes em vacinar e os anti-vacinas, por exemplo. A imunidade de grupo não vai ser algo global nem mesmo nacional, será uma questão local. Iremos continuar a assistir a surtos em determinadas regiões e os viajantes serão os principais elementos de transporte do vírus. Por isso, acredito que vamos chegar a uma altura em que os países ricos – já vacinados – não vão querer que os países pobres tenham casos, porque as pessoas vacinadas que estejam numa zona de muitos casos podem transportar o vírus para os seus países de origem e originar surtos em regiões onde não se chegou à imunidade de grupo. E nessa altura os países ricos vão ajudar os países pobres. As vacinas vão lá chegar, com medo de importação do vírus para os países ricos, mas só depois destes terem alcançado a taxa de vacinação que considerem suficiente do ponto de vista da imunidade das suas populações.

A OMS tem insistido muito na tónica de que precisamos de controlar a pandemia em todo o mundo, de forma equitativa, mas os dados globais da vacinação falam por si. O que está a falhar? Quais os grandes obstáculos?

É uma mensagem que a OMS tem de lançar, mas ao mesmo tempo é uma mensagem que sabemos que não pode ser posta em prática. Pensemos na logística que foi necessária para se começar a vacinar em Portugal. Como é que essa logística poderia ser replicada em países com serviços de saúde frágeis, capacidades reduzidas de mobilização de profissionais e capacidades muito reduzidas de ir para o terreno e iniciar campanhas de vacinação? Como é que poderíamos pensar que estas pessoas iriam ser vacinadas da mesma forma ou acompanhar, no fundo, a vacinação dos outros países com mais recursos? Sou muito pessimista em relação a este aspeto. Eticamente, claro que é reprovável não se estar a ajudar, mas até que ponto a ajuda que está a ser feita conseguirá ter impacto? Por exemplo, Portugal doou recentemente 50 mil doses de vacinas a Angola, mas esta é uma gota num oceano.

Mais do que uma questão de acesso às vacinas propriamente ditas, a falta de infraestruturas nos países mais pobres é o grande desafio?

É a infraestrutura, mas também a necessidade de identificar as principais prioridades de vacinação e os principais grupos de risco, que não são os mesmos que temos cá. A maior parte das vezes, não existe sequer uma noção correta de quais são os grupos de risco. Temos também de contar com a fragilidade do ponto de vista político de alguns destes países, que poderia implicar que determinados grupos especiais da população recebessem vacinas, em vez dos grupos de risco. Por outro lado, não sabemos ainda, na realidade, quais os países de maior risco do ponto de vista do aparecimento de muitos casos. Sabemos depois de acontecer, como o que se passou na Índia.

Qual é o panorama nos países de língua oficial portuguesa?

Com exceção de Moçambique, que tem tido casos acima de várias centenas por dia, a verdade é que outros países como Angola ou Cabo Verde, por exemplo, têm tido um número reduzido de novos casos. Tenho alguma dificuldade em perceber como é que a vacinação poderá avançar sem se identificar os verdadeiros índices de transmissão e os riscos de transmissão. Angola continua a ser, para mim, uma certa incógnita pela quantidade tão baixa de casos que tem e que não é apenas explicado por haver menos testes. Porque é que Angola tem um determinado padrão e Moçambique tem outro tipo de padrão? Existem muitos diferenças que precisam de ser analisadas para uma vacinação mais eficaz. Já o Brasil é um caso muito difícil, pela negativa, e representa também um dos problemas que temos vindo a assistir neste contexto de pandemia: a promiscuidade entre a ciência e a política.

A OMS, o GAVI e a CEPI puseram em marcha o mecanismo Covax precisamente para ajudar a uma distribuição mais equitativa das vacinas. Como vê esta iniciativa?

O princípio é bom. Não sei quais os critérios em termos de quantidades e países de destino das vacinas, mas assumo que existam esses critérios e que estejam a ser enviados para os locais certos. Mas o que está a acontecer é que as quantidades de vacinas doadas ao mecanismo são completamente ridículas. Vamos voltar à mesma questão: só depois de haver uma estabilização grande e uma segurança grande nos países ricos é que o Covax, no fundo, irá funcionar.

O Covax é o pilar de vacinação do ACT – Acess to Covid-19 Tools Accelerator, uma iniciativa de colaboração global para acelerar o desenvolvimento, produção e acesso equitativo a testes, tratamentos e vacinação contra a Covid-19 em todo o mundo. Liderado pela CEPI – Coalition for Epidemic Preparedness Innovations, pela GAVI Alliance e pela OMS, o Covax enviou, até à data de 22 de julho, 136 milhões de vacinas a 136 países participantes.