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Febre amarela em Lisboa? A epidemia de 1857

Primeiro a cólera, depois a febre amarela. Três anos de surtos epidemiológicos amedrontaram a capital portuguesa nos anos 50 do século XIX e tornaram ainda mais urgentes as melhorias sanitárias na cidade. Um Relatório publicado na época permite saber mais sobre como foi a epidemia de febre amarela em Lisboa, em 1857.

23 Jul, 2021
7 min de leitura

Estava ainda Lisboa a lidar com uma epidemia de cólera, quando uma nova doença viral se começava a manifestar em bairros antigos do centro da cidade. Tratava-se de um surto de febre amarela que, em 1857, atemorizou a população lisboeta. Com um total de 5.652 mortos, a febre amarela em Lisboa foi fatal para cerca de um em cada três infetados e, tendo em conta a população total, provocou a morte de um em cada 35,4 habitantes. A vacina contra a doença só estaria disponível 80 anos depois.

A imagem de topo mostra a dispersão geográfica da doença na capital portuguesa. Consta do “Relatório da Epidemia de Febre Amarella em Lisboa, no Anno de 1857”.

Apesar de endémico das regiões tropicais e subtropicais de África e Américas (e epidémico nas regiões temperadas destes continentes), ao longo da História Lisboa teve uma relação muito particular com o vírus da febre amarela. Foi na capital portuguesa que, em 1723, eclodiu a primeira epidemia de febre amarela na Europa, com uma mortalidade estimada de seis mil pessoas. E foi aqui que, mais de um século depois, em 1856-57, a presença do vírus voltou a alarmar a cidade, provavelmente importado do Brasil.

 

À época, com pobres condições sanitárias e fracos cuidados de higiene – a par da densidade demográfica – Lisboa estava particularmente vulnerável em questões de saúde. Prova disso mesmo foi o surto de cólera que, entre 1855 e 1856 afetou a cidade e provocou 3.275 mortes, levando à adoção de medidas especiais de limpeza da via pública e habitações, assim como à limitação da venda de comestíveis em mercados.

 

Precisamente nos últimos meses desta epidemia colérica (já em declínio), em setembro de 1856, outro tipo de surto chegou à cidade. Registos da época, reunidos no “Relatório da Epidemia de Febre Amarella em Lisboa, no Anno de 1857”, dão conta dos primeiros casos de febre amarela em Lisboa, ainda esporádicos. O surto pareceu desvanecer-se no início de 1857, mas foi ilusão de pouca dura. Em julho de 1857, a epidemia eclode de forma devastadora na capital, onde permanece até ao primeiro trimestre de 1858.

 

À medida que a epidemia de febre amarela se acentuava, todo o quotidiano da cidade foi afetado. Quem tinha posses para tal, saiu da cidade por medo de contágio. Estabelecimentos comerciais fecharam, assim como casas de espetáculos. Foram criados seis hospitais civis destinados especificamente ao tratamento da febre amarela. Nas ruas particularmente desertas, procissões de fé tentavam acalmar o que era visto como um ‘castigo divino’ que se tinha abatido na cidade. Para minimizar o pânico, os jornais deixaram de dar destaque aos óbitos e os enterros passaram a ser feitos no secretismo da noite.

 

O impacto da epidemia foi de tal ordem na capital que, terminado o surto, se criou a Medalha da Febre Amarela, numa homenagem a todos aqueles que se distinguiram no combate à doença. A condecoração acabou por ser patrocinada pelo Rei D. Pedro V, monarca a quem se destinou o único exemplar de ouro da medalha e particularmente elogiado pela sua ação face ao flagelo – uma vez que optou por permanecer na cidade (ao contrário de muitas famílias abastadas), visitando frequentemente os hospitais.

Do desconhecimento da época à descoberta da vacina

A febre amarela não é transmissível diretamente de pessoa para pessoa. É sempre necessário a picada de um mosquito para o vírus circular (pessoa-mosquito-pessoa ou, em caso de febre amarela esporádico, macaco-mosquito-pessoa).

Pouco se sabia, na Lisboa do século XIX, sobre as características da febre amarela e do vírus que origina a doença.

 

O “Relatório da Epidemia de Febre Amarella em Lisboa, no Anno de 1857” dava conta que “uma habitação imunda, com muitos indivíduos acumulados, sem ventilação e sem despejos convenientes podia concorrer para mais facilmente contrair a moléstia, e para esta se propagar e transmitir com maior facilidade”. A publicação reforçava ainda que “a febre amarela respeitou menos as classes abastadas e que desfrutam as comodidades da vida, e foi mais igual na sua ação maléfica”.

 

Atualmente, é sabido que a febre amarela é causada por um vírus transmitido por um vetor: mosquitos das espécies Aedes e Haemogogus, dependendo do contexto (urbano ou silvestre). Em contexto silvestre, os mosquitos transmitem, de forma esporádica, o vírus de primatas não-humanos para um hospedeiro humano que se encontra também na selva. Trata-se de um caso de febre amarela esporádico ou endémico. No entanto, se um humano infetado na selva regressa a uma aldeia ou cidade e é picado por um mosquito de espécie urbana, este vai agir como vetor de transmissão entre pessoas, provocando um surto. Estamos então perante febre amarela urbana ou epidémica. Em piores condições sanitárias, os mosquitos encontram condições mais favoráveis para proliferar, o que leva também ao aumento da incidência da doença em humanos.

A febre amarela não tem uma terapêutica antiviral específica. Os medicamentos administrados aliviam apenas os sintomas.

Tudo isto era desconhecido na época da epidemia de febre amarela em Lisboa, em 1857. O vetor responsável e o vírus foram identificados apenas no final do século XIX e primeiros anos do século XX, sendo o primeiro vírus humano a ser isolado. Ainda assim, algumas das medidas sanitárias implementadas na capital acabaram por ter um presumível efeito positivo, ao diminuírem as condições favoráveis à reprodução do mosquito.

 

São exemplo dessas medidas a desinfeção dos espaços públicos, o reforço da autoridade da polícia sanitária, a “desacumulação” de ruas e habitações superlotadas e os apelos a uma melhor ventilação e arejamento das casas, entre outras.

 

Se as ações sanitárias podem ter sido eficazes na frente da prevenção, o mesmo não se aplica aos tratamentos aplicados aos doentes. No surto de febre amarela em Lisboa, aplicavam-se as “receitas” já usadas noutras epidemias: infusões aromáticas, purgantes, preparados de ferro, sais de quinino, cânfora, quina ou mostarda. O Relatório sobre a epidemia assumia, ainda assim, que “não se encontra prática ou remédio que mereça muito particular menção pela decidida utilidade”.

O medo que a epidemia trouxe à cidade – e a elevada mortalidade registada – seriam evitáveis nos dias de hoje. Depois de diversas tentativas goradas, uma vacina eficaz contra a febre amarela ficou disponível em 1937, oitenta anos após o surto em Lisboa. A vacina é administrada apenas uma vez, conferindo uma imunização para toda a vida de uma pessoa, à partida.

 

As campanhas de vacinação ocorrem nas regiões onde a doença é endémica. Caso vá viajar para um destino endémico e em especial onde existam surtos ativos, poderá ser necessário (ou até mesmo obrigatório) receber a vacina antes da viagem, numa consulta de medicina do viajante.

Documentar uma epidemia: a memória que perdura da febre amarela em Lisboa

A Biblioteca Histórica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT-NOVA) possui um exemplar do Relatório.

“Pestilencial, violenta, duradoura, e que ficará sendo na história uma das muito notáveis entre as da mesma natureza desenvolvidas na Europa” – assim é a descrição que se pode ler no “Relatório da Epidemia de Febre Amarella em Lisboa, no Anno de 1857”. Publicado em 1859, o Relatório resulta do trabalho do Conselho Extraordinário de Saúde Pública do Reino (órgão criado especificamente para acompanhar a evolução da epidemia e propor medidas de contenção).

 

Ao longo das suas páginas, é feita uma descrição pormenorizada da forma como a doença afetou a capital, desde informação sobre cadeias de contágio, sintomatologia, incidência (por idade, sexo e profissão), condições sanitárias da capital, influência das condições meteorológicas, reflexões sobre a origem do surto e tratamentos mais comuns. É, desta forma, um testemunho incontornável deste surto de febre amarela em Lisboa.

 

O valor do relatório é mais do que uma curiosidade histórica. Foram, precisamente, observações detalhadas como esta, em Lisboa (e noutras áreas afetadas pelo vírus) que permitiram avançar o conhecimento científico sobre a febre amarela. Das observações dos diversos surtos evoluiu-se para um saber acumulado que, em última instância, contribuiu para isolar o vírus e avançar para o desenvolvimento de uma vacina eficaz.