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Vacinas contra o cancro: utopia ou realidade?

Criar vacinas contra o cancro que possam ser aplicadas em larga escala, consolidando uma cura para a doença, é um desafio para a investigação. A tecnologia ARNm, também usada nas vacinas contra a Covid-19, poderá desbloquear novas soluções. Saiba porquê.

7 Dez, 2021
8 min de leitura

O cancro é a segunda causa de morte em Portugal e é também uma das patologias que mais mata no mundo. Apesar de ser uma das doenças mais investigadas pela comunidade científica, ainda não foi possível, até à data, encontrar tratamentos satisfatórios para a maioria dos cancros. Uma das abordagens que está, há décadas, a ser explorada é o desenvolvimento de vacinas contra o cancro, que possam prevenir e tratar a doença. Mas este tem sido um percurso difícil e moroso. A utilização da tecnologia ARN mensageiro (ARNm ou, na sigla em inglês, mRNA) é uma das vias mais promissoras no combate a este flagelo. Conheça as vacinas que já existem para ajudar a prevenir e a combater alguns tipos de cancro, bem como os desenvolvimentos mais recentes nesta área.

As vacinas, por norma, são desenvolvidas para provocar uma resposta imunitária contra um agente infecioso. Têm um alvo bem definido e circunscrito. No caso do cancro, a situação é mais complexa, porque na verdade a ciência não está a combater um único inimigo, mas uma grande diversidade de doenças. No total, já foram identificadas mais de 200 tipologias de cancro, afetando todos os nossos órgãos, e cada uma delas dotada de características específicas. Os fatores que os desencadeiam são múltiplos e afetam diversos mecanismos cruciais para a vida normal das nossas células. Cada cancro é causado por um conjunto diferente de mutações e, à medida que o tumor cresce, podem acumular-se ainda mais. “Isto significa que cada tumor tem um conjunto individual de mutações e, como tal, um tratamento que funcione bem para um paciente pode não resultar num outro paciente”, esclarece o instituto de investigação Worldwide Cancer Research.

 

Desta forma, a multiplicidade de variáveis associadas ao desenvolvimento de um tumor torna difícil para a ciência encontrar vacinas contra o cancro que possam ser, realmente, uma solução universal para curar ou prevenir esta doença.

Saiba mais sobre os mecanismos de funcionamento das vacinas no artigo “Vacinas Covid-19: como funcionam e qual a sua eficácia?

Que vacinas contra o cancro existem?

Apesar dos desafios, os investigadores desenvolveram algumas vacinas que têm um papel importante na prevenção de determinados tipos de cancro e, em alguns casos, também no tratamento de outros tumores. Desta forma, no que diz respeito às vacinas contra o cancro, encontramos duas tipologias:

 

● As vacinas que previnem o cancro

 

Entre as vacinas autorizadas – e que estão integradas no Programa Nacional de Vacinação (PNV) –, existem duas que ajudam a prevenir o cancro: a vacina contra o vírus do papiloma humano (HPV) e a vacina contra o vírus da hepatite B. Em comum estas duas vacinas têm o facto de criarem anticorpos contra os vírus que podem levar ao desenvolvimento de cancro. A proteção conferida por estas vacinas é indireta: elas não atacam diretamente as células do cancro, mas protegem o organismo de infeções e, assim, reduzem o risco de aparecimento de tumores.

As vacinas contra o HPV e Hepatite B reduzem o risco de desenvolvimento de cancro.

No caso da vacina contra o HPV, o objetivo é reduzir as infeções pelos vírus do papiloma humano, que são responsáveis pelas infeções de transmissão sexual mais comuns em todo o mundo. Embora existam tipos de HPV de baixo risco, outros representam um risco mais elevado e podem dar origem a alguns tipos de cancro, nomeadamente do colo do útero (com o HPV a ser responsável por quase 100% de todos os casos), vagina, ânus, vulva, pénis e orofaringe. A vacina integrada no PNV protege contra os tipos de HPV mais frequentes e de risco mais elevado, sendo recomendada para as raparigas a partir de 10 anos e, desde outubro de 2020, também para os rapazes. A vacinação inclui duas doses, com um intervalo de seis meses, e deve ser administrada antes de qualquer exposição ao HPV (daí que seja recomendada logo na infância, antes do início da atividade sexual).

 

Já a vacina contra a Hepatite B desempenha um papel importante na prevenção da infeção pelo vírus que causa esta doença e que está associado ao desenvolvimento de lesões graves, como a cirrose e algumas formas de cancro no fígado. Este tornou-se o primeiro exemplo de que as vacinas, ao prepararem o sistema imunitário para combater uma infeção, podem prevenir também o desenvolvimento de cancros com ela relacionados. O PNV prevê três doses desta vacina: logo após o nascimento, aos dois meses e aos seis meses de vida.

● As vacinas que tratam o cancro

 

Ao contrário das vacinas anteriores – que atuam na prevenção de infeções e desta forma ajudam a prevenir cancros com elas relacionados –, as vacinas dirigidas para o tratamento de tumores estimulam o sistema imunitário a combater uma doença que já está instalada no organismo. Como? Ajudando-o a identificar e destruir as células cancerígenas. A ambição destas vacinas é evitar que um tumor cresça, eliminar as células cancerígenas que podem permanecer no organismo depois de um tratamento, impedindo o reaparecimento do cancro.

 

Uma das primeiras vacinas a ser desenvolvida com este propósito foi a Sipuleucel-T (Provenge), aprovada em 2010 pela Food and Drug Administration (FDA). Desenhada para criar uma resposta imunitária contra o cancro da próstata metastizado resistente à terapia hormonal (castração química), esta vacina tem a particularidade de ser preparada de modo personalizado para cada doente, utilizando as suas próprias células do sistema imunitário. A vacina não cura o cancro, mas estudos demonstraram que pode ajudar a melhorar a expectativa de sobrevivência dos doentes. Ainda assim, diversos aspetos – como o facto de ser um tratamento dispendioso e com alguma complexidade laboratorial e clínica – têm limitado a sua utilização.

 

Um outro exemplo de vacina desenvolvida para tratar o cancro é a Talimogene Laherparepvec (T-VEC), direcionada para o tratamento do melanoma avançado. Esta vacina, administrada diretamente em lesões na pele que não podem ser removidas por cirurgia, é composta por um vírus oncolítico [tipo de vírus que infecta preferencialmente células cancerígenas, destruindo-as] herpes simplex tipo 1. Para além disso, este vírus foi geneticamente modificado para produzir uma proteína que favorece o recrutamento de células do sistema imunitário para a vizinhança do tumor. Deste modo, é igualmente promovida a indução de imunidade antitumoral específica, tal como explica a Ordem dos Farmacêuticos, no seu boletim sobre o tema da imunoterapia anticancerígena.

 

Além destes exemplos, também a vacina BCG, criada para combater a tuberculose, é usada para o tratamento do cancro da bexiga, em determinadas situações, nomeadamente quando o tumor está localizado nas camadas mais superficiais da bexiga. Geralmente, este tipo de imunoterapia é implementado após uma intervenção cirúrgica (resseção transuretral vesical) e tem como objetivo principal prevenir o reaparecimento do tumor. A BCG é introduzida diretamente na bexiga, durante duas horas, estimulando o sistema imunitário para combater e destruir células cancerígenas residuais. O tratamento é realizado periodicamente e pode prolongar-se durante anos. A explicação para o Bacilo Calmette-Guérin (BCG) mostrar-se particularmente eficaz no combate ao cancro da bexiga está relacionada com a hipersensibilidade da parede vesical a este bacilo – o que não acontece nos restantes órgãos do corpo humano.

O futuro das vacinas contra o cancro: novas abordagens

Além das vacinas acima assinaladas, encontram-se em investigação e desenvolvimento diversas vacinas direcionadas para atuar contra diversos tipos de cancro: cancro do pulmão, cancro da mama, cancro do pâncreas, cancro colorretal, cancro do rim e leucemias, são alguns dos exemplos. Na base do desenvolvimento destas vacinas estão abordagens muito distintas e específicas. Uma delas assenta precisamente na utilização dos vírus oncolíticos, uma vez que estes têm a capacidade de atacar apenas as células cancerígenas, poupando as células saudáveis.

 

Para além disso, tal como referido inicialmente, uma das estratégias mais promissoras assenta na criação de vacinas que têm por base a tecnologia de mRNA. Por exemplo, a BioNTech – parceira da Pfizer no desenvolvimento de uma das vacinas contra a Covid-19 – está a estudar a utilização de diferentes formas de aplicar a tecnologia mRNA no combate a diversos tipos de cancro (melanoma, cancro da próstata, cancro nos ovários, colorretal, entre outros). Alguns destes estudos encontram-se já na Fase II dos ensaios clínicos.

A esperança é que o recurso à tecnologia de mRNA permita resolver um dos maiores desafios que os investigadores enfrentam no combate contra o cancro: ajudar o sistema imunitário a reconhecer rapidamente as células do tumor e destruí-las. As vacinas de mRNA estão a ser desenhadas para ensinar o sistema imunitário a identificar proteínas-alvo específicas que existem na superfície das células de determinados tumores, contribuindo para a sua posterior destruição. A confirmar-se a eficácia desta abordagem, podemos estar no limiar duma nova era de desenvolvimento de vacinas contra o cancro.