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Doenças sem vacina: o que atrasa a ciência?

A vacina contra a Covid-19 foi desenvolvida em tempo recorde. Mas, no âmbito das doenças infeciosas, existem doenças sem vacina que aguardam há décadas por uma solução eficaz. Como se explica o facto de a ciência avançar a velocidades tão diferentes?

5 Nov, 2021
11 min de leitura

Organismos muito complexos. Vírus com rápidas mutações. Aposta preferencial no desenvolvimento de tratamentos que curam ou previnem a progressão da doença. Estes são alguns dos fatores que explicam o facto de existirem doenças sem vacina – como a infeção pelo VIH, a malária ou a hepatite C – que continuam a aguardar por abordagens bem-sucedidas.

10 meses. Este foi o tempo necessário para desenvolver a primeira vacina contra a Covid-19 e obter o aval das autoridades de saúde. Nunca, na história da medicina, uma vacina foi desenvolvida e disponibilizada no mercado de uma forma tão célere. A rapidez da ciência em encontrar uma solução para debelar a pandemia suscitou diversas dúvidas sobre os motivos pelos quais ainda não foram desenvolvidas vacinas para outras doenças infeciosas que existem há décadas – como a infeção pelo VIH ou a malária – e que todos os anos causam milhares de vítimas mortais. Afinal, o que está a impedir a ciência e a medicina de avançar na descoberta de uma solução para estas doenças sem vacina?

 

A resposta a esta questão assenta em múltiplos fatores. Primeiro, tudo depende das características e complexidade do agente infecioso. Por exemplo, alguns vírus sofrem mutações muito rápidas, que as vacinas não conseguem acompanhar: quando a vacina está desenvolvida, ela já se encontra obsoleta e não é eficaz porque, entretanto, o agente infecioso sofreu alterações. Nestes casos, os vírus estão dois passos à frente da ciência.

 

Além disso, algumas doenças podem não ter uma vacina, mas contam com medicamentos que se têm revelado eficazes quer na cura (caso da hepatite C), quer no tratamento dos sintomas, funcionando com um travão à progressão da doença e permitindo o aumento da esperança média de vida dos infetados (caso do VIH).

 

A existência destes medicamentos – ainda que muitos deles sejam dispendiosos e não estejam disponíveis para toda a população – aliviam a urgência e a necessidade da criação de uma vacina, acabando por constituir também um desincentivo ao investimento na investigação e desenvolvimento de uma vacina. E este ponto – o do investimento – é crucial para que uma vacina possa ver a luz do dia. Sem financiamento não é possível desenvolver uma vacina.

De acordo com o estudo Estimating the cost of vaccine development against epidemic infection diseases: a cost minimisation study, o processo de desenvolvimento de uma vacina desde a sua descoberta até ao licenciamento pode custar milhares de milhões de dólares, demorar mais de 10 anos e tem uma probabilidade média de 94% de falhar.

Como foi possível desenvolver tão rapidamente a vacina contra a Covid-19?

Cientistas estudam o grupo dos coronavírus há mais de 50 anos. Quando surgiu o novo SARS-CoV-2 já existia um histórico de trabalho sobre os coronavírus que permitiu acelerar o desenvolvimento da vacina.

No caso das vacinas contra a Covid-19 não faltaram investimentos. A braços com uma pandemia que paralisou o mundo, as entidades públicas e privadas uniram-se, canalizaram recursos ilimitados e conhecimento com o mesmo objetivo: encontrar uma vacina que permitisse combater a Covid-19. Este empenho global e multidisciplinar, associado ao facto de algumas das vacinas contra a Covid-19 assentarem em tecnologias inovadoras (como as pioneiras vacinas de ARN mensageiro) e em conhecimento que foi sendo acumulado e aperfeiçoado ao longo das últimas décadas, contribuiu para a rapidez no processo.

 

Para isso, foi também fundamental as farmacêuticas envolvidas no processo poderem avançar com as diversas fases de desenvolvimento da vacina ao mesmo tempo: nenhuma etapa do processo foi eliminada ou reduzida. Em vez disso, as diversas fases foram implementadas em paralelo, o que permitiu ganhar tempo. Por último, destaque também para o papel desempenhado pelas agências reguladoras do setor da saúde, que foram rápidas na avaliação dos processos, sem comprometer os rigorosos critérios de segurança e qualidade.

 

Graças a esta conjugação de fatores foi possível encurtar o prazo de desenvolvimento de uma vacina de 10 anos para 10 meses.

Três doenças sem vacina, três desafios

1. VIH

 

O VIH (ou HIV, em inglês), sigla para o vírus da imunodeficiência humana, é o agente causador da sida (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e ataca o sistema imunitário do organismo humano, destruindo os mecanismos de defesa que nos protegem das doenças.

 

Em 2020, cerca de 680 mil pessoas morreram em todo o mundo na sequência da infeção pelo VIH. Desde que o vírus foi reconhecido, há 40 anos, mais de 36 milhões de pessoas perderam a vida (estatísticas da UNAIDS).

A comunidade científica trabalha há largas décadas no desenvolvimento de uma vacina contra o VIH. As dificuldades neste processo devem-se, entre outros fatores, às rápidas mutações do vírus, que dão origem a variantes que os anticorpos e outros mecanismos da resposta imunitária não conseguem reconhecer. E como não reconhecem o vírus, também não o combatem. Resultado: o vírus permanece incógnito.

 

A natureza do VIH – muito mais complexa do que a do SARS-CoV-2 – tem representado um desafio enorme à comunidade científica no desenvolvimento de uma vacina, pelo que os cientistas têm apostado no combate ao vírus em várias frentes, nomeadamente através do desenvolvimento de medicamentos antirretrovirais que bloqueiam a ação do vírus nas células humanas e ajudam a prevenir o aparecimento de complicações na sequência da infeção.

 

Quanto à vacina, a ciência parece estar hoje mais perto de alcançar este objetivo. Entre as diversas iniciativas com sinais promissores, destaque para uma possível vacina contra o VIH que se encontra na terceira fase de ensaios, num estudo apelidado de Mosaico e que envolve 3800 participantes de oito países. Criada pela Janssen, a estratégia da farmacêutica para combater o VIH assenta num esquema vacinal heterólogo, utilizando duas vacinas: a Ad26.Mos4.HIV (com base no adenovírus tipo 26) e a vacina proteica gp140 bivalente (que possui uma mistura de antigénios da proteína gp140 do subtipo C e da gp140 mosaico – na qual se integram vários subtipos circulantes).

 

O tempo e a ciência dirão se a vacina experimental da Janssen tem o perfil de eficácia e segurança necessário para se tornar na primeira vacina do mundo contra o VIH.

2. Malária

 

A malária é uma doença provocada por parasitas do género Plasmodium e é transmitida aos humanos através da picada de um mosquito do género Anopheles. Ao entrar na corrente sanguínea, o parasita infeta sobretudo as células do fígado e os glóbulos vermelhos. Se não for tratada atempadamente, a malária pode ser fatal.

 

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019 cerca de 229 milhões de pessoas encontravam-se infetadas com malária. Nesse ano, a doença causou mais de 400 mil mortes.

O percurso para o desenvolvimento de uma vacina contra a malária tem sido sinuoso e marcado por diversas tentativas. Ao contrário do que acontece com a generalidade das vacinas – desenvolvidas para neutralizar vírus ou bactérias – no caso da malária, o agente infecioso a combater é um parasita, o que representa um desafio adicional, uma vez que a complexidade destes microrganismos é mais elevada (comparativamente a um vírus ou a uma bactéria).

 

Adrian Hill, investigador que lidera uma equipa de cientistas da Universidade de Oxford que está a desenvolver uma vacina experimental contra a malária, explicou recentemente em entrevista à TSF as dificuldades deste processo: “Nenhum país do mundo licenciou ainda qualquer vacina contra doenças humanas causadas por parasitas. Os parasitas são maiores, têm milhares de antigénios – o parasita da malária tem mais de cinco mil, é preciso escolher o antigénio certo”. Hill sublinha ainda que muitos parasitas “anulam o sistema imunitário, portanto, é ainda mais difícil garantir fortes respostas imunitárias”. Para já, a vacina que está a ser desenvolvida pela Universidade de Oxford – a R21/Matrix-M – aponta para dados promissores: os resultados dos ensaios clínicos da fase 2 revelaram uma eficácia de até 77%.

 

Recorde-se que a vacina mais avançada no combate à malária é a RTS,S também conhecida como “Mosquirix”, desenvolvida pela GlaxoSmithkline. Esta foi a vacina recomendada pela OMS para “uso alargado” em crianças da região subsariana e de outas regiões sob risco moderado e elevado de malária grave, numa decisão histórica da instituição a 6 de outubro de 2021. A RTS,S estava a ser administrada, desde 2019, a crianças do Gana, Quénia e Malawi, no âmbito de um programa piloto. Ainda assim, a sua taxa de eficácia relativamente baixa faz com que continue a investigação por uma vacina que possa controlar definitivamente a doença.

Na corrida à vacina contra a malária há também um projeto português a salientar. Uma equipa do Instituto de Medicina Molecular (iMM), em parceria com investigadores de outras entidades, está a trabalhar no desenvolvimento de uma potencial vacina contra a malária, a PbVac. Os ensaios clínicos iniciais envolveram 24 voluntários e mostraram uma redução de 95% da carga parasitária no fígado, face aos indivíduos que não foram vacinados. A PbVac distingue-se por utilizar como plataforma de vacinação um parasita da malária de roedores, que não é um agente patogénico para os seres humanos.

3. Hepatite C

 

O VHC é o vírus que causa a hepatite C. A doença caracteriza-se por uma inflamação no fígado que, em última instância, pode conduzir à cirrose, à insuficiência hepática e ao cancro. Embora uma parcela das pessoas infetadas consiga recuperar da infeção, entre 70% e 80% dos infetados desenvolvem hepatite crónica, de acordo com a informação disponível no Portal SNS 24.

 

Em 2019, a OMS estimava que 71 milhões de pessoas em todo o mundo estariam infetadas com hepatite C. Nesse ano, cerca de 290 mil pessoas morreram na sequência da infeção, principalmente devido a cirrose e carcinoma hepatocelular (cancro primário do fígado).

O número de infeções por VHC é suficientemente expressivo para incentivar os laboratórios a apostar no desenvolvimento de uma vacina. No entanto, embora já exista uma vacina contra a hepatite B, o mesmo não se aplica em relação à hepatite C. Entre outros motivos, esta diferença explica-se porque os vírus que provocam estes dois tipos de hepatite são provenientes de famílias distintas: enquanto o vírus da hepatite B é um vírus com genoma de ADN, o VHC é um vírus de ARN. O vírus tem tendência para acumular mutações, o que coloca dificuldades acrescidas ao desenvolvimento de uma vacina.

 

Existe ainda um outro fator desincentivador ao investimento numa vacina para a hepatite C: estão disponíveis no mercado fármacos que tratam e curam a doença. De acordo com a informação disponível no Portal SNS 24, “todas as pessoas com hepatite C têm disponível no Serviço Nacional de Saúde tratamentos que garantem a cura em mais de 95% [dos casos]”.

 

Apesar das dificuldades que a comunidade científica enfrenta no desenvolvimento de vacinas para algumas doenças infeciosas, a experiência da luta contra a Covid-19 poderá ajudar a acelerar o processo de criação de soluções para estas doenças sem vacina. Não só em termos de rapidez da avaliação das autoridades competentes, mas também no aproveitamento do conhecimento gerado com as vacinas da Covid-19. Ainda no início do ano, a Moderna anunciou que está a utilizar a tecnologia de ARN mensageiro para desenvolver uma vacina contra o VIH, com o início dos ensaios clínicos previsto ainda para 2021. Este pode ser um sinal de uma nova era no desenvolvimento de vacinas.