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Matemática e Covid-19: uma equação de sucesso contra a pandemia

Da previsão da evolução do número de infetados à distribuição de vacinas, a modelação matemática e estatística têm dado um contributo indispensável na resposta à pandemia. Conheça melhor a relação entre a matemática e a Covid-19.

13 Ago, 2021
9 min de leitura

Qual a relação entre a matemática e a estatística e a Covid-19? Os modelos matemáticos e estatísticos tentam aproximar-se da realidade e têm sido uma ferramenta essencial no controlo e combate à pandemia. Com o apoio da professora do IHMT-NOVA, Luzia Gonçalves, explicamos quais foram as principais dificuldades encontradas pelos especialistas para modelar a evolução da crise pandémica.

R0. R (t). Incidência. Curvas epidémicas. Número de infetados. Número de óbitos. Estes são alguns indicadores que foram amplamente difundidos na comunicação social e com os quais os portugueses estão familiarizados desde o início da pandemia. São também exemplos de conceitos que têm sido trabalhados ao longo do último ano e meio por profissionais de saúde, mas também por matemáticos e especialistas em estatística.

 

Enquanto os cientistas de várias áreas trabalham no desenvolvimento de vacinas e de tratamentos para prevenir e combater os efeitos da Covid-19 e os médicos e enfermeiros prestam os cuidados de saúde a quem foi infetado, os matemáticos tentam antecipar a evolução da pandemia e prever os possíveis cenários futuros. Apesar da incerteza, sempre inerente, através da modelação matemática e estatística foi sendo possível perceber, por exemplo, como iria evoluir o número de infetados, o número de pessoas com necessidade de internamento, adaptar os recursos de saúde a essas previsões e estimar os efeitos e a eficácia das diversas medidas de contenção que foram sendo tomadas.

 

A matemática e a estatística são assim ferramentas essenciais para ajudar os Governos e as autoridades de saúde de todo o mundo a conterem a progressão do vírus. Mas não só. Ao trabalharem sobre aspetos da dinâmica de transmissão do vírus, estas ciências têm sido também um instrumento importante para definir as melhores estratégias de imunização. Por exemplo, a implementação da campanha de vacinação da população contra a Covid-19 exigiu o desenvolvimento de algoritmos e modelos que só são possíveis graças à matemática e às ciências da computação.

Matemática e Covid-19: os desafios de modelar uma pandemia

Esta não é obviamente a primeira vez em que a matemática e a estatística andam de mãos dadas com a saúde. Por inerência, as áreas da saúde precisam da matemática e estatística. A história está repleta de episódios em que a utilização de cálculos matemáticos funcionou como uma espécie de bússola para perceber como determinada doença iria evoluir.

 

No século XVIII, por exemplo, o matemático e médico Daniel Bernoulli desenvolveu um modelo que mostrou a eficácia da inoculação preventiva contra a varíola, como forma de diminuir a mortalidade causada pela doença. Desde então, muitos modelos matemáticos e estatísticos foram desenvolvidos para estudar a dinâmica de transmissão de doenças como a malária, o sarampo, a febre amarela ou mesmo a SARS. Estes podem variar entre os simples modelos determinísticos até aos modelos estocásticos mais sofisticados, com complexos esquemas de simulação computacional.

 

Durante a atual pandemia, um dos modelos que inicialmente foi mais utilizado pelos matemáticos, biólogos e epidemiologistas em todo o mundo, foi o tradicional modelo SEIR, através do qual os especialistas tentaram reconstruir a dinâmica de transmissão da doença, por via de equações diferenciais, dividindo a população por quatro grupos: as pessoas suscetíveis (S); as expostas (E); as infetadas (I) e as recuperadas (R). Em conjunto, os quatro grupos dão origem à sigla SEIR.

 

No entanto, as características e a complexidade da atual pandemia trouxeram ao de cima novos desafios na modelação da doença e expuseram as fragilidades e imprecisões de algumas previsões. Tal como explica Luzia Gonçalves, doutorada em Estatística Experimental e Análise de Dados e professora do IHMT-NOVA, “modelar um fenómeno conhecido é mais fácil do que modelar dados de um fenómeno sem história, onde reinava um desconhecimento quase total sobre o vírus, a infeção e a doença”.

 

A professora do IHMT-NOVA explica ainda que no caso da atual pandemia “os dados foram surgindo a uma velocidade considerável, com critérios voláteis para a definição de “casos” e com medidas de controlo como nunca vimos, em constante mudança. Logo, a análise estatística (mesmo que não envolva modelação) baseada na “repetição de experiências em condições idênticas” não foi suficiente para lidar com a complexidade de dados surgidos desta pandemia, principalmente na fase inicial”.

 

A acrescentar todas estas condicionantes houve ainda um outro fator que também influenciou a exatidão das previsões de alguns dos modelos iniciais: a necessidade de dar respostas rápidas sobre para onde caminhava a pandemia e como poderíamos “achatar” a curva epidémica, que se mostrou mais “requintada” do que o esperado. “A urgência de respostas imediatas por parte das instituições governamentais e da comunicação social mobilizou diferentes profissionais que quiseram dar o seu valioso contributo, com base em experiências de outras áreas, mas por vezes desfasadas das características muito específicas deste tipo de dados”, explica Luzia Gonçalves.

 

Na verdade, em Portugal, e à semelhança do que aconteceu em outros países, vários modelos estatísticos que apareceram numa fase inicial da pandemia previam números muito pessimistas sobre a evolução dos casos de infetados e de óbitos, sem que existisse uma clara distinção entre os indivíduos suspeitos, sintomáticos, assintomáticos ou infetados confirmados. O facto de, nessa fase da pandemia, existirem poucos especialistas em estatística chamados para a linha da frente contribuiu também para o uso incorreto dos modelos estatísticos e para a disseminação de conceitos errados. “Em Portugal, a maior parte das instituições ligadas à saúde tem um número reduzido de profissionais com formação em estatística (e também em epidemiologia e matemática)”, indica a professora do IHMT-NOVA.

No artigo “Covid-19: Nothing is Normal in this Pandemic“, Luzia Gonçalves e os seus colegas explicam que a resposta à Covid-19 envolve tantas dimensões que se torna difícil incluir todas essas dimensões num único modelo estatístico.

Foi exatamente para melhorar a literacia estatística, chamar a atenção para a importância de combater a disseminação de conceitos errados e para a necessidade de usar os modelos estatísticos com precaução, que Luzia Gonçalves, em conjunto com outros investigadores do Centro de Estatística e Aplicações da Universidade de Lisboa (nomeadamente, Maria Antónia Amaral Turkman, Carlos Geraldes, Tiago A. Marques e Lisete Sousa), publicou no início do ano o artigo “Covid-19: Nothing is Normal in this Pandemic” no Journal of Epidemiology and Global Health. Neste artigo, os especialistas não só desconstruíram alguns conceitos estatísticos que foram utilizados de forma errada, mas lançaram também pistas sobre o que pode ser feito para trazer um maior rigor científico às análises e modelagem matemática e estatística no estudo de pandemias. Sendo que um dado é certo: sem dados suficientes e credíveis é impossível definir modelos bons ou previsões confiáveis.

 

Luzia Gonçalves deixa ainda um alerta para a forma como vemos e interpretamos os resultados das análises matemáticas e estatísticas: “não podemos esquecer que um modelo pode captar bem alguns aspetos da realidade, mas não é a realidade em si. Alguns modelos podem ser bons para prever o número de casos a curto prazo, mas péssimos a médio prazo. Os modelos podem ter pressupostos que se não se cumprirem podem dar previsões sem sentido”. Por essa razão, e porque existe sempre grau de incerteza associado às previsões, é importante não olharmos para as previsões ‘como acontecimentos quase certos’.

Covid-19: Um momento de viragem para uma maior valorização da matemática e da estatística

Apesar dos desafios enfrentados pelos matemáticos e especialistas em estatística na construção das projeções sobre a evolução da Covid-19, não restam dúvidas sobre o papel fundamental que a estas ciências tiveram na monitorização e controlo da pandemia. As análises dos matemáticos permitiram criar cenários, ajudar a planear e avaliar o impacto das diversas estratégias. A matemática e a estatística constituíram, assim, armas cruciais e indispensáveis no combate à atual crise. E a pandemia tornou mais evidente para o meio científico e também para a opinião pública o valor e a visibilidade do papel da estatística na saúde.

Interessado em saber mais sobre como a matemática contribuiu para uma melhor compreensão da Covid-19? O ICIAM – International Council for Industrial and Applied Mathematics reúne, no seu website oficial, alguns projetos internacionais nesta área de investigação. Também poderá encontrar informação rigorosa sobre como a estatística está ser aplicada no combate à pandemia no website da Royal Statistical Society.

Luzia Gonçalves não tem dúvidas: “certamente haverá um ’antes’ e um ’depois‘ desta pandemia. O que fica em termos de reflexão, desenvolvimento de novas ferramentas para a visualização e tratamento de dados, novos modelos ou adaptações de modelos já existentes, sem dúvida que reafirmou a importância das áreas da estatística e da matemática na saúde”.

 

Mas é preciso mais. A professora do IHMT-NOVA alerta para a necessidade de reforçar a investigação e o ensino das metodologias da estatística e suas implicações na modelação de dados epidemiológicos. “As áreas da matemática e da estatística têm sido negligenciadas em muitas instituições e são áreas cruciais para a compreensão de fenómenos e padrões que ajudem no combate desta e de outras doenças ou infeções”, conclui.

 

Num momento em que vivemos, em que os dados são uma das principais matérias-primas, a produção e análise de dados credíveis constitui um fator crítico de sucesso e a matemática e a estatística emergem cada vez mais como bússolas incontornáveis para o progresso da humanidade.