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Gripe de Hong Kong: o mundo em alerta no final dos anos 60

Nos anos 60 do século XX, a Gripe de Hong Kong foi a primeira pandemia a ser combatida por medicamentos antivirais e motivou o uso de uma nova tecnologia de vacinas: as vacinas de subunidades virais. Descubra mais sobre o impacto global da doença.

20 Mai, 2021
6 min de leitura

Tornou-se na terceira pandemia do século XX, depois da Gripe Espanhola (1918-20) da Gripe Asiática (1957-58). Falamos da Gripe de Hong Kong (1968-1970) que, tal como as duas pandemias precedentes, foi provocada por um subtipo do vírus da gripe do tipo A. Conhecida como a “pandemia esquecida”, o subtipo do vírus da gripe A na sua origem (H3N2) continua a circular até aos dias de hoje.

  • A Gripe de Hong Kong relevou-se particularmente grave nos EUA, onde provocou a morte a cerca de 100 mil pessoas. Paralelamente, acentuou animosidades antiasiáticas na opinião pública. Cartazes como este, na imagem, davam eco a conotações ideológicas associadas à pandemia.

    Créditos: Duke University Libraries / Outdoor Advertising Association of America Archives

  • A edição de 8 de janeiro de 1969 do Diário de Notícias tinha uma chamada de capa sobre a Gripe de Hong Kong. “A gripe ameaça”, lia-se na primeira página, com destaque também para a produção de vacinas e perspetivas de que a epidemia chegasse a Portugal no final de janeiro ou início de fevereiro.

    Créditos: Diário de Notícias

  • Uma microbiologista do norte-americano National Communicable Disease Center tenta, em 1968, isolar partículas virais do vírus da gripe a partir de uma amostra proveniente de secreções na garganta.

    Créditos: Centers for Disease Control and Prevention (CDC) / Public Health Image Library

De 1968 a 1970, a pandemia da Gripe de Hong Kong provocou, de forma estimada, entre um milhão a quatro milhões de mortes. Nos EUA, registaram-se cerca de 100 mil mortes, enquanto na Europa a situação foi particularmente grave na Alemanha (cerca de 60 mil mortes, com algumas estações de metro a terem de ser utilizadas como morgues improvisadas). Ainda assim, com uma taxa de mortalidade reduzida (abaixo de 0,5%), o impacto global da Gripe de Hong Kong acabou por não ser muito maior do que uma comum gripe sazonal. Foi, no entanto, a elevada taxa de transmissão que fez, na época, soar os alarmes.

 

De realçar que a severidade desta pandemia variou bastante em diferentes populações e geografias, tanto ao nível de transmissão, como na taxa de mortalidade. Na Europa, a segunda vaga (1969-70) foi mais mortífera, enquanto nos EUA registaram-se mais mortes na primeira vaga (1968-69). Noutro exemplo, enquanto nos EUA o vírus se encontrava bastante disseminado, com muitos registos de doença grave e complicações clínicas, no Japão afetou um número muito reduzido de pessoas.

Enfrentar uma pandemia nos anos 60 do século XX

 

Muitos dos impactos e respostas à pandemia tiveram relação direta com o contexto da época, como é natural. O número elevado de passageiros em viagens aéreas (estimado em 160 milhões de pessoas) ajudou a rápida disseminação global do vírus da gripe A H3N2. Por outro lado, a experiência recente da pandemia de 1957 permitiu acionar rapidamente, em alguns países, protocolos de vigilância, medidas de controlo de contágio e identificação de grupos prioritários a serem vacinados (a vacina contra a Gripe de Hong Kong foi desenvolvida no final de 1968 pelo americano Maurice Hilleman).

 

Embora sem confinamentos obrigatórios, a resposta à Gripe de Hong Kong afetou o dia a dia de muitos. Regras e apelos para distanciamento social e lavagem frequente das mãos tornaram-se comuns. Nos EUA, os jornais da época davam conta de encerramentos de escolas, assim como um abrandamento nos negócios e produção industrial – com receios até de perturbações no correio por altura do Natal. A 19 de dezembro de 1968, o jornal New York Times referia um custo potencial de vários milhares de milhões de dólares decorrentes do tratamento dos doentes e das perdas de produtividade na economia norte-americana.

Devido à origem geográfica do vírus (que se pensa ter sido na China, chegando só depois a Hong Kong, onde causou uma extensa epidemia), a pandemia de 1968-70 acentuou a retórica antiasiática no Ocidente. Alguns jornais chamaram à epidemia de H3N2 “a gripe de Mao” e cartazes norte-americanos alertavam para a doença como algo “não americano”.

A Gripe de Hong Kong disseminou-se, tal como a gripe de 1957, numa altura de guerra entre os EUA e o Vietname. Foram, aliás, soldados norte-americanos regressados do Vietname que, em setembro de 1968, trouxeram a estirpe gripal pandémica da Ásia para os EUA, país onde o vírus se veio a revelar particularmente agressivo.

 

Na Europa, há registos do vírus também em 1968, embora só tenha chegado a alguns países do continente mais tarde, no início do ano seguinte. Na Itália, notícias internacionais davam conta da presença do vírus em novembro de 1968, data em que já haveria cerca de 200 mil doentes só em Roma. Em França, os primeiros registos confirmados datam da última quinzena de janeiro de 1969.

 

A edição de 8 de janeiro de 1969 do Diário de Notícias avisava, na capa, “A gripe ameaça”, prevendo que a Gripe de Hong Kong chegasse a Portugal no final desse mês ou no princípio de fevereiro. Em preparação, a vacina respetiva já teria sido distribuída aos profissionais de saúde dos hospitais de Santa Maria e do Rego (atual Hospital Curry Cabral), em Lisboa.

O impacto da Gripe de Hong Kong na saúde global

 

A pandemia de 1968 surgiu pelo fenómeno, mais radical, de mudança antigénica (ou, em inglês, “antigenic shift“) do vírus H2N2, responsável pela pandemia de Gripe Asiática de 1957. Chama-se mudança antigénica ao processo genético em que um agente infecioso (como um vírus) altera os seus genes, evitando assim a resposta imunitária do hospedeiro.

 

O novo subtipo foi isolado na Universidade de Hong Kong em julho de 1968. O contágio além-fronteiras confirmou-se no mês seguinte, quando o mesmo vírus foi identificado em Singapura, Taiwan, Filipinas, Vietname e Malásia. Em setembro, o vírus é confirmado também na Tailândia, Índia, Austrália, Irão e EUA.

 

A maioria das infeções registadas provocou sintomas de doença ligeira, como tosse, dores de cabeça ou febre. No entanto, em certos casos, a Gripe de Hong Kong poderia causar também doença grave e hospitalização, associada a pneumonia, bronquiolite ou bronquite.

 

Além da vacina, o vírus da gripe A H3N2 acabou por ser também combatido com medicamentos antivirais, que faziam a sua “estreia” em contexto de pandemia, à luz dos grandes avanços neste campo alcançados na década de 1960. O progresso na ciência permitiu também inovar a tecnologia de vacinas usadas contra a Gripe de Hong Kong: em vez do recurso ao vírus inteiro, passaram a ser usadas subunidades virais, o que diminuiu a ocorrência de efeitos adversos.

 

Apesar da resposta relativamente rápida na época, o vírus da gripe A H3N2 continuou a circular pelo mundo até aos dias de hoje como um vírus da gripe sazonal. A maioria da população já adquiriu, ao longo do tempo, defesas contra este subtipo.

A Gripe de Hong Kong acabou também por estar associada à melhoria da cooperação internacional em saúde. De que forma? A partilha de informação sobre o H3N2 tornou evidente as discrepâncias na qualidade e quantidade de dados epidemiológicos entre os diferentes países. Na sequência, a Organização Mundial de Saúde implementou um formulário padronizado de vigilância para todos os Centros Nacionais da Gripe.