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Como seria o mundo sem vacinas?

As vacinas fazem parte da saúde global há tantas décadas que grande parte da população ignora quais os perigos das doenças infeciosas tradicionais, como a poliomielite ou a difteria. Consegue imaginar como seria viver sem vacinas?

8 Out, 2021
10 min de leitura

Como seria o mundo sem vacinas? E como seria Portugal? O progresso trazido pelos Programas Nacionais de Vacinação leva a que muitos – sobretudo de gerações mais novas – não receiem doenças altamente contagiosas que ainda circulam em algumas regiões do planeta. E que tenham até dificuldade em conceber um mundo no qual as doenças infeciosas clássicas se destacavam como as principais causas de mortalidade e morbilidade. Essa era a realidade, incluindo em Portugal, até inícios do século XX, na qual sobreviver à infância e chegar à idade adulta já poderia ser considerado um feito.

Mais vulneráveis e com menos defesas contra as doenças infeciosas, os bebés e crianças eram particularmente afetados por estes problemas de saúde, antes da descoberta e distribuição generalizada das vacinas. Por isso, contrair várias destas doenças altamente contagiosas e, em certos casos, letais – como a varíola, poliomielite, difteria ou sarampo, entre muitas outras – era algo relativamente comum. Quem não sucumbisse à elevada mortalidade infantil, teria ainda pela frente outras doenças endémicas e epidemias importadas que circulavam frequentemente na população. Os sobreviventes poderiam permanecer com sequelas graves para toda a vida, como cegueira, surdez ou paralisia, dependendo da doença.

A erradicação, eliminação e controlo das doenças infeciosas históricas só foi possível com o contributo da ciência, nomeadamente com a descoberta das vacinas e a sua administração em larga escala.

As vacinas possibilitaram que o contacto com as doenças infeciosas tradicionais deixasse de ser uma inevitabilidade. Mais do que raros, os casos da varíola já não existem (a doença foi declarada erradicada do mundo, desde 1980) e são várias as regiões do mundo, incluindo a Europa, que conseguiram eliminar uma outra doença grave: a poliomielite.

 

Imaginar um cenário em que as vacinas não tenham sido desenvolvidas – ou que, por algum motivo, deixassem de ser administradas de forma rotineira – é imaginar o reaparecimento de doenças que consideramos como algo do passado. Doenças que, em novos surtos epidémicos, se disseminariam rapidamente e exporiam a população – sobretudo infantil – a sintomas dolorosos, sequelas definitivas e até à morte.

 

Ao contribuir para a imunização da população e controlo de novos surtos, o impacto das vacinas na saúde global permitiu reduzir a mortalidade, assim como aumentar a qualidade de vida (já sem as sequelas de doenças infeciosas graves) e a esperança média de vida da população. As vacinas contribuíram também para avanços fundamentais na saúde infantil e na redução da mortalidade entre a população mais nova. Mais saúde, de forma geral, que se refletiu em mais condições de progresso para as sociedades.

Em 1880, a esperança média de vida mundial era de menos de 30 anos. Atualmente, é de cerca de 72 anos. As vacinas e a evolução nos cuidados de saúde foram grandes contributos para esta evolução.

Em estatísticas anteriores à pandemia de Covid-19, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimava que as vacinas prevenissem 2,5 milhões de mortes todos os anos. Só nos Estados Unidos, desde 1924 que as vacinas evitaram mais de 40 milhões de casos de difteria, mais de 35 milhões de casos de sarampo e mais de 103 milhões de casos totais de doenças infantis. Mesmo antes da vacinação contra a Covid-19, as vacinas existentes já salvavam mais de cinco vidas a cada minuto.

 

A administração em larga escala das vacinas permitiu reduzir também o medo nas comunidades em relação às doenças infeciosas tradicionais – sobretudo quando era identificado um caso ativo na família ou na vizinhança. Viver a pandemia de Covid-19 permitiu-nos perceber ou recordar como a interação livre entre pessoas é afetada com a presença, na comunidade, de uma doença infeciosa. Imagine-se como seria o dia a dia, durante séculos da nossa história, quando coexistiam ativamente surtos de diferentes patologias contagiosas.

 

De realçar, no entanto, que o mundo não é igual em termos de vacinação, pelo que há ainda muitos desafios pela frente. Enquanto na Europa, muitas das doenças infeciosas graves são algo do passado, o mesmo não se verifica em países mais desfavorecidos. Uma criança num país desenvolvido tem mais de 10 vezes mais probabilidades de morrer de uma doença que poderia ser prevenida com uma vacina.

 

O mundo sem vacinas implicaria que todas estas doenças infeciosas, que associamos ao passado ou a regiões mais desfavorecidas, tornassem a fazer parte do nosso dia a dia. Significaria também um retrocesso no combate a outras doenças infeciosas e até a doenças não transmissíveis – como o cancro, através da vacinação contra certos genótipos do vírus do papiloma humano (HPV), associados ao cancro do colo de útero. Atualmente estão também em estudo várias vacinas experimentais para prevenir e tratar certos tipos de cancro.

O papel das campanhas nacionais de vacinação

Se hoje podemos viver sem o risco constante de poliomielite, varíola, difteria ou tétano, o mérito está, além da descoberta científica, também na forma como as vacinas se tornaram acessíveis à grande maioria da população – e na forma como se implementaram Programas Nacionais de Vacinação, abrangendo infância e idade adulta.

 

Isto porque não basta apenas descobrir uma vacina, é preciso que esta chegue efetivamente à população, em larga escala. Veja-se, por exemplo, o caso da varíola, doença contra a qual foi desenvolvida a primeira vacina do mundo.

Os Programas Nacionais de Vacinação visam distribuir vacinas, em larga escala, às populações, de forma organizada e seguindo um calendário específico.

A criação desta vacina, em 1796, deve-se a Edward Jenner, que apresentou publicamente a sua investigação em 1798. Ainda assim, os esforços de imunização da população contra a varíola consolidaram-se pela administração rotineira e em larga escala da vacina. No caso português, foram fundamentais os esforços de vacinação no início do século XX e, mais tarde, a inserção da vacina contra a varíola no Programa Nacional de Vacinação (PNV), em 1966 – um ano depois do PNV ter sido criado. Já no Brasil, por exemplo, a primeira campanha nacional de vacinação contra a varíola ocorreu em 1962. A doença, existente há pelo menos três mil anos, foi erradicada do planeta menos de 200 anos depois da descoberta de Jenner.

 

Desde o início que foi notório o sucesso do PNV na diminuição da morbilidade e mortalidade das doenças abrangidas. Um dos casos mais emblemáticos é o da vacinação contra a poliomielite, cuja campanha nacional marcou o início do PNV, em 1965. Entre outubro de 1965 e junho de 1966 foram administradas 1,5 milhões de primeiras doses e 1,3 milhões de segundas doses. O esforço permitiu, num ano, reduzir os casos notificados da doença em 97,7% e os óbitos em 92,8% (comparando o período 1950-1965 com o ano de 1977). A redução – e consequente eliminação – da poliomielite evitou ainda centenas de paralisias em crianças portuguesas, uma das sequelas mais comuns da doença.

 

Foram precisamente estes esforços generalizados de vacinação contra a poliomielite, um pouco por todo o globo, que permitiram a quase erradicação da doença. A “polio” foi eliminada do hemisfério ocidental em 1994. Atualmente, o vírus selvagem apenas circula em dois países: Afeganistão e Paquistão.

A poliomielite afeta sobretudo crianças até aos cinco anos, com 1 em cada 200 infeções a resultar em paralisia irreversível. Entre os infetados que apresentem paralisia, 5 a 10% acaba por morrer com a imobilização dos músculos do sistema respiratório.

Os ensinamentos de um mundo sem vacinas

À medida que mais décadas passam desde o desenvolvimento de um Programa Nacional de Vacinação, a memória coletiva de um conjunto de doenças vai-se desvanecendo. Os registos históricos, contudo, demonstram bem o que era Portugal e o mundo sem qualquer vacina, agravado por frágeis condições de higiene, fome e vulnerabilidades socioeconómicos. Crianças paralisadas totalmente em poucas horas devido a poliomielite, com convulsões pelo contacto com o tétano, com a pele cheia de dolorosas bolhas características da varíola ou com as vias respiratórias obstruídas em caso de difteria são apenas alguns exemplos dos sintomas destas doenças.

 

A OMS descreve a varíola, por exemplo, como uma das doenças mais devastadoras a que a humanidade já assistiu, tendo causado milhões de mortes antes da erradicação possível pela vacinação. Só no século XX, cerca de 300 milhões de pessoas morreram por varíola. Estima-se que a taxa de letalidade da doença (percentagem de mortes em relação ao total de infetados) fosse de 30%. Cegueira e lesões cutâneas eram algumas das sequelas de quem sobrevivia.

 

Mas sem vacinas poderíamos assistir rapidamente ao reaparecimento de surtos de outras doenças, como a poliomielite. A própria OMS alerta que, enquanto uma única criança seja infetada, todas as crianças do mundo estão em risco de contrair poliomielite – daí a importância de continuar a vacinação sistemática, mesmo em regiões onde a “polio” já foi eliminada, como é o caso da Europa. Sem a erradicação da doença, poderão surgir até 200 mil novos casos, todos os anos, durante uma década, em todo o mundo.

Ventilador de pressão negativa (ou “pulmão de aço”) usado para apoiar a respiração em doentes infetados com poliomielite. Palestina, 1940 (Everett Collection).

Já os casos de outras doenças infeciosas, como a difteria ou a rubéola, para as quais existem vacinas amplamente administradas, são raros no continente europeu. Contudo, mesmo para essas, é necessário manter uma monitorização cuidada e ações programadas de imunização da população, através da vacinação. Veja-se, por exemplo, o aumento de infeções e mortes por sarampo devido ao declínio das taxas de imunização – com origem em diversos fatores, desde a hesitação vacinal causada por desinformação até à fragilidade dos sistemas de saúde em países mais desfavorecidos.

 

Como a história da saúde global nos ensina, a luta contra doenças infeciosas através da vacinação é uma maratona continuada no tempo. No caso de transmissão pessoa-a-pessoa, focos de infeção locais podem rapidamente disseminar-se e colocar o mundo em risco.

 

Imaginar um mundo sem vacinas é uma forma de perceber a importância deste contributo da ciência para a saúde global. Mas também é um alerta de que o mundo não deve desvalorizar as doenças infeciosas tradicionais, mesmo em tempos de pandemia de Covid-19, continuando os esforços globais de imunização.